“Na audiófilia tudo é possível, só não espere o impossível”, brincava o meu pai com seus poucos amigos audiófilos.
No domínio das impossibilidades, logicamente ele estava falando de valores mais condizentes com a realidade do brasileiro que, naquele tempo pagava suas contas, comia e se vestia recebendo em Cruzeiros. Se os LPs importados já eram exorbitantes, imagine então comprar um toca-discos Thorens, um gravador de rolo Akai, etc.
Aliás, se havia algo que realmente tirava meu pai do sério, era quando falavam da famigerada Reserva de Mercado, e lembravam que uma das promessas do sr Staub para convencer os militares era justamente que uma indústria de áudio nacional forte iria disponibilizar equipamentos mais baratos e com a mesma qualidade. Com o fim da Reserva, vimos o quanto os produtos nacionais estavam defasados em relação ao que se fabricava lá fora, e o quanto os preços estavam superfaturados. Uma indústria que só sobreviveu pela imposição ditatorial da Reserva de Mercado, e que jamais competiu com o que se fazia de melhor lá fora.
Tenho uma excelente história a respeito dessa falsa igualdade. Era permitido a qualquer brasileiro que visitasse a Zona Franca de Manaus trazer 500 dólares (FOB) em equipamentos sem pagar alíquota de imposto. Todo audiófilo que podia, deu um jeito de arrumar “mulas” pagando a passagem de ida e volta para conseguir burlar a reserva de mercado e comprar sistemas decentes. E com o “jeitinho brasileiro” de se conseguir diminuir o valor das notas nas lojas da Zona Franca, e um “cafezinho” aos fiscais nos aeroportos, teve audiófilo que montou um sistema completo em questão de três a quatro viagens.
Tinha um cliente do meu pai que era um defensor da Reserva de Mercado, que achava que o toca-discos RP-II não devia nada aos melhores importados. Um outro audiófilo, também cliente do meu pai, totalmente contrário à Reserva de Mercado, propôs o seguinte desafio: trazer da Zona Franca um toca-discos Thorens TD 160 com braço original Thorens e cápsula Stanton 500, e colocarem lado a lado no sistema do que tinha o RP-II, e chamar seis amigos para dar o veredicto. Meu pai foi um dos escolhidos para participar dos jurados, e eu fui junto, é claro!
Os discos foram escolhidos a dedo pelos dois donos dos toca-discos, em comum acordo. Eram seis LPs: um de voz feminina (Ella, obviamente), uma voz masculina (Sinatra), uma big band (Count Basie), um piano solo (Arrau), uma sinfonia (Nona de Beethoven), e uma gravação nacional (João Gilberto). Nem o dono do RP-II achou seu toca-discos superior. Como sempre brinco: foi um massacre. Naquele dia , todos saímos convictos de que a Reserva de Mercado havia sido um erro grandioso, pois não era apenas impor ao consumidor o que ele pode ou não comprar – mais grave que isso é dar uma falsa ideia ao fabricante nacional que ele está no mesmo patamar tecnológico do que está sendo fabricado lá fora. Pois quando a reserva acabar, suas chances de competir e sobreviver serão completamente nulas (foi exatamente o que ocorreu).
Desculpe meu desabafo, amigo leitor, mas se tem algo que jamais entendi foi como os militares compraram essa ideia de que proteger a indústria de áudio nacional era assegurar a defesa do estado!
O toca-discos da Mark Levinson é uma daquelas agradáveis surpresas, que dificilmente imaginamos que possam ocorrer até ver o fato concretizado e, depois de ouvir o produto, nos perguntarmos: não poderia ter sido feito antes? Em um mercado aberto à livre concorrência, fusões e parcerias ocorrem aos montes, então nada mais natural que a Mark Levinson, ao decidir que iria produzir seu primeiro toca-discos Hi-End, o fizesse em parceria com um grande fabricante americano de toca-discos: a VPI. Mas todo o processo só se realizou pelo fato da VPI não só comprar a ideia como também aceitar todas as especificações solicitadas pelos engenheiros da Mark Levinson para o projeto do 515.
Ao montar o 515 é que percebemos os cuidados nos detalhes e como a parceria foi positiva. É um belo toca-discos! Possui um motor AC de precisão que aciona o pesado prato totalmente de alumínio, utilizando três correias de borracha. O braço tipo gimbal (e não unipivot, como na maioria dos modelos da VPI) de 12 polegadas é totalmente impresso em 3D e já sai de fábrica equipado com a excelente cápsula Ortofon Cadenza Bronze, uma MC.
Existe a opção de se pedir o toca-discos sem o braço, mas depois de ouvir por dois meses o 515, digo a você que o casamento desse braço com a Cadenza Bronze é o ponto alto do projeto!
A base do toca-discos é feita de MDF de 1/2 polegada de espessura em sanduíche, os pés são feitos em alumínio usinado com almofadas de borracha, muito semelhantes aos pés dos eletrônicos da Mark Levinson. O prato e o rolamento principal são os mesmos utilizados em inúmeros produtos da VPI. O rolamento invertido suporta com larga folga o prato de 5 kg, que é formado à partir de um único tarugo de alumínio, usinado com um grande disco de MDF preso a sua parte inferior com o objetivo de melhorar o amortecimento e diminuir as ressonâncias que possam vir da base onde o toca-discos está assentado.
O topo da carcaça do motor é construído em um sanduíche, como a base. O motor é montado diretamente na camada de alumínio. As laterais da caixa do motor são construídas em alumínio de 0,9 mm de espessura, com a vantagem de que o alumínio não é magnético, não sendo influenciado pelo campo magnético gerado pelo motor.
O design foi baseado no modelo Analog Drive System (ADS) da VPI, mas por questões de custos foi otimizado para um único motor. Os engenheiros da Mark Levinson fizeram questão das três correias, alegando que em testes comparativos com uma única correia, houve uma melhor conexão do motor com o prato e um arrasto mais rápido e preciso. O único inconveniente das três correias é que elas podem sair do lugar se o usuário esquecer de parar o prato completamente, para trocar a rotação. Fiz isso umas quatro vezes até me lembrar que não era conveniente, afinal colocar as correias no lugar pela proximidade não é tarefa para apressados!
O braço do 515 tem algumas características exclusivas que não são utilizadas nos toca-discos da VPI. O contrapeso é exclusivo deste modelo, assim como o headshell, criados em 3D e de uso exclusivo do 515. A grande vantagem, segundo a Mark Levinson, é que este design exclusivo elimina um conjunto de conectores no caminho do sinal (o conector Lemo de quatro pinos entre o braço e a base) de modo que os fios do braço vão diretamente para as tomadas RCA na parte traseira do 515.
Seu braço, na minha opinião, é o melhor de tudo deste toca-discos, e está entre os melhores braços de 12 polegadas que já escutei. Eu o teria em meu toca-discos de referência como segundo braço, se a Mark Levinson o vendesse separado, sem pestanejar.
A cápsula Cadenza Bronze é a segunda na hierarquia da série Cadenza. Ela possui a agulha Replicant 100 e um cantilever cônico de alumínio. A bobina é enrolada com o conceituado fio Aucurum, exclusividade da Ortofon, que é um fio de cobre puro de seis noves folheado a ouro. A Ortofon também informa que esta cápsula inclui o processo FSE, elemento de estabilização de campo para uma perfeita linearidade durante passagens de crescendo intensos e complexos.
Tivemos a possibilidade de ouvir o 515 com dois excelentes prés de phono: o nosso Boulder 508 e o CH Precision P1 (leia Teste 1 nesta edição), e ainda escutá-lo com dois excelentes prés de linha (Shindo e Leben), além de nosso Sistema de Referência.
Uma coisa precisa ser dita de imediato: é preciso estar muito bem ajustado o braço, e a altura do motor para que as correias encaixem perfeitamente, antes de sair ouvindo as belezas deste toca-discos. Esse trabalho deixei para o amigo e colaborador André Maltese, que sempre gentilmente se desloca de São Paulo à São Roque para a montagem de cada cápsula e toca-discos em teste. Além de ser um apaixonado pelo que faz, ainda tem aquele olhar de surpresa e alegria ao ouvir os resultados do seu trabalho. O Christian Pruks e o Maltese são, de longe, os melhores ajustadores de toca-discos que conheci depois do meu pai. É trabalho de relojoeiro acima de tudo, e precisa, além de ter exímio conhecimento, ser perspicaz para se realizar o ajuste fino do fino. Pois é esse ajuste final que irá possibilitar extrair o último sumo do setup, e o analógico necessita desse preciosismo, pois o casamento braço/cápsula é sempre bastante crítico.
O cabo entre o braço e os prés de phono foi o Feel Different FDlll (leia Teste 4 nesta edição).
Já tinha escutado a Cadenza Bronze em alguns toca discos e sempre gostei demais de sua assinatura sônica, pela precisão e musicalidade. Ela é uma cápsula que trabalha sempre de maneira relaxada, só mostrando os dentes quando necessário. O que seduz de imediato e nos faz perguntar se realmente precisamos de algo a mais, em matéria de cápsula hi-end. Ela está entre as minhas cápsulas preferidas, e sempre que amigos e leitores me pedem uma cápsula de preço médio, ela sempre está na tríplice escolha. Sua capacidade de ler as “entranhas” dos sulcos é majestosa, no entanto nunca havia notado o quanto ela cresce em todos os quesitos em um braço de 12 polegadas, como este do 515.
O casamento foi literalmente perfeito! Um equilíbrio tonal ainda mais estendido, médios com melhor corpo e camadas e um grave com maior peso e deslocamento de ar.
Muitas vezes escuto discussão sobre a assinatura sônica de determinadas cápsulas como definitivas. Ouço e depois me pergunto será que estavam realmente corretamente ajustadas? Era um braço condizente com as qualidades da cápsula? O pré de phono estava corretamente ajustado para ela? São tantas variáveis em um setup analógico, meu amigo, que muitos não fazem ideia do quanto de paciência e conhecimento são necessários. Principalmente quando se sobe de patamar.
Vou dar um único exemplo. Depois do Maltese ajustar, ligamos o 515 direto no P1, que também estava em teste. Este impressionante pré de phono, de nível superlativo em todos os sentidos, possibilita que o usuário escolha entre as entradas de modo corrente ou tensão (leia mais detalhes no Teste 1). Fomos no mais “descomplicado”, no modo corrente, em que o P1 faz tudo! Ficou espetacular, ouvimos alguns discos juntos, eu e o Maltese, extasiados com a performance, e ele se foi. À noite, me pus a tentar no modo tensão ver se conseguia um “caldinho” a mais. Resumindo, fiquei dois dias debruçado em tentar um resultado melhor e não consegui. Claro, voltei para o modo corrente, que deu um resultado estupendo.
Aí quando voltei nosso toca-discos de referência com a cápsula SoundSmith Hyperion2, fui direto para a entrada de modo corrente e o resultado foi catastrófico, literalmente! A Hyperion 2 tem que ir somente no modo tensão, e a Cadenza somente no modo corrente.
Aí você precisa entender o que aconteceu, se quiser realmente aprender a lição. A SoundSmith é uma cápsula híbrida (nem MM e nem MC), então em modo corrente ficou realmente estranha. Já a Cadenza, ao contrário, por ser uma genuína MC, em modo corrente casou como uma luva! “São demais os mistérios dessa vida”, diria o poeta. E, se tratando de setups analógicos: vivendo e aprendendo sempre!
Voltando ao casamento do braço de 12 polegadas com a Cadenza Bronze, em todos os quesitos da Metodologia ela se saiu muito bem. Como disse, não me lembro de ouvir uma performance tão espetacular desta cápsula com nenhum outro braço de 9 ou 10 polegadas. Li dois testes deste toca-discos publicados lá fora, e ambos os revisores ficaram impressionados com a precisão e a musicalidade. Com essa combinação, como vem de fábrica, o ouvinte só precisa sentar e ouvir todos os seus discos sem nenhum risco de se sentir desapontado. Zero de fadiga auditiva! Um dos revisores até disse que a parte mais difícil do teste era desligar o sistema. Concordo integralmente com ele. Ligado ao P1 da CH Precision, tive um dos três melhores setups analógicos a meu dispor.
Foram centenas de discos revisitados, de todos os gêneros, estilos, discos “ralados” com mais de 40 anos de vida, gravações audiófilas, 33 e 45 RPM, e sempre uma satisfação integral.
Eu sempre lembro aos amigos mais próximos que desejam se aventurar no mundo analógico, que o façam de forma consciente. E busquem montar um setup analógico que seja prático, objetivo e que não precise viver sendo ajustado para extrair o melhor de cada gravação. Os cuidados sejam unicamente com a manutenção dos LPs, assegurando que quando eles forem escutados, estejam limpos, bem limpos.
O 515 pode ser o toca-discos definitivo do jeito que ele vem de fábrica para 90% dos audiófilos que não abriram mão do analógico e que tem uma relação com o vinil que supera a razão. Perfeitamente ajustado, e com um pré de phono à altura do conjunto cápsula/braço, a satisfação será garantida!
PONTOS POSITIVOS
Excelente toca-discos em termos de construção e performance.
PONTOS NEGATIVOS
Os cuidados em parar o prato para trocar de rotação, e um certo ruído intermitente do motor (que não conseguimos detectar o motivo – passava dias sem, depois voltava).
ESPECIFICAÇÕES – CÁPSULA ORTOFON
Projeto | Bobina Móvel (Moving Coil, MC) |
Resposta de frequência | 20Hz – 20kHz (+/- 1,5 dB) |
Saída | 0,4 mV |
Impedância de carga | 50 – 200 Ohms |
Impedância interna | 5 Ohms |
Separação de canais | 24 db @ 1 kHz |
Equilíbrio entre canais | 1,0 db @ 1kHz |
Força de trilhagem | 2,2 – 2,7 g |
Peso | 10,7 g |
ESPEFICAÇÕES
Projeto | Acionado por correia com motor síncrono AC |
Velocidades | 33-1/3 e 45 RPM |
Braço | 3D impresso, gimbal |
Wow & flutter | <0,1% |
Rumble | <85 dB |
Sinal/ruído | -73 db |
Dimensões (L x A x P) | 533 x 200 x 404 mm |
Peso | 26 kg (líquido), 34 kg (embalado) |
TOCA-DISCOS MARK LEVINSON 515 com cápsula Ortofon Cadenza bronze
Equilíbrio Tonal 12,0
Soundstage 12,0
Textura 12,0
Transientes 12,0
Dinâmica 11,5
Corpo Harmônico 12,0
Organicidade 12,0
Musicalidade 13,0
Total 96,5
VOCAL: 10,0
ROCK . POP : 10,0
JAZZ . BLUES: 10,0
MÚSICA DE CÂMARA: 10,0
SINFÔNICA: 10,0
Link para o teste completo: